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EU, BANCARIO

 

Esse ex-funcionário do BB é jornalista, cartunista e colaborador nos principais jornais e revistas do País. Tem uma coluna semanal no jornal O Dia e foi um dos criadores, na década de 60, do jornal alternativo O Pasquim.

 

O temível Roniquito, figura legendária de Ipanema nos anos 60, insultava até os mortos. No velório do não menos legendário Hugo Bidet, bêbado e desesperado com a trágica perda do amigo, vagava pelos corredores das capelas do cemitério de São João Batista, olhos esbugalhados, queixada projetada para a frente, mais prognata que nunca, até que entrou na sala vizinha.

 

– O morto de vocês, comparado ao nosso, é uma porcaria de morto! – berrou para os amigos e parentes que pranteavam o ente querido.

 

É claro que apanhou que nem boi ladrão, só o defunto não bateu nele.

 

Assim era Roniquito. Quando não tinha mais ninguém para ofender, agredia verbalmente os amigos que bebiam com ele. Eu, por algum motivo misterioso, era poupado. Mas um dia eu estava tomando o meu chopinho no Veloso quando ele adentrou com um dicionário Webster debaixo do braço e, com ar furibundo, me apontou um dedo acusador.

 

– Você ... – disse, mas não completou a frase –, você... – repetiu, o dedo em riste.

 

– Você o quê, Roniquito? – perguntei.

 

Tomou fôlego e disparou, como se fosse o insulto máximo:

– Você é um bancário!

 

– É claro que sou, e com muita honra – respondi –, todo mundo sabe que trabalho no Banco do Brasil.

 

Já tinha uns dez anos de BB, depois tive que pedir demissão porque eu não era dois e não podia trabalhar ao mesmo tempo no Pasquim e no Banco. O resultado é que, até hoje, aos 68 anos, tenho de ralar no teclado e na prancheta, sem direito a aposentadoria. Mas não me arrependo nem de ter saído do Banco nem de ter ficado tantos anos, mais precisamente 17, como escriturário. E, acredite quem quiser, sem uma falta sequer.

 

Graças à disciplina que adquiri na seção de telegramas (onde hoje é a cinemateca do CCBB, na Primeiro de Março, no Rio de Janeiro), nunca deixei de cumprir compromissos profissionais, para pasmo de muita gente que me tem na conta de boêmio, o que sempre fui.

 

E outra coisa: nunca trabalhei com um grupo tão competente e brilhante. A começar pelo meu conferente, Sérgio Porto, que depois virou Stanislaw Ponte Preta, o grande humorista que inventou o Febeapá – Festival de Besteiras que Assola o País. Infelizmente trabalhamos juntos pouco tempo, coisa de um ano, depois saiu do Banco. Nesse tempo eu nem pensava em ser cartunista. Mais tarde, vim a ser ilustrador de todos os livros dele.

 

A seção de telegramas tinha horário especial - das três da tarde às oito -, ideal para quem trocava a noite pelo dia (meu caso) e para quem tinha um “bico” – que hoje se chama “frila” – ou tinha outro emprego. Na seção tinha de tudo: locutores esportivos – Geraldo Borges e Clóvis Filho; pianista –Homero Magalhães, grande intérprete de Chopin; o dono da primeira sauna do Rio, Alfredo Castro Neves, um cara espalhafatoso que usava camisas estampadas com flores e por isso ganhou de Homero, tremendo gozador, o apelido de “Orquestra Cubana”; escritor – Víctor Giudice, excelente contista e crítico de música erudita; o melhor comentarista de turfe que já tivemos, o Bolonha; o presidente do Sindicato dos Bancários, Aluísio Palhano, que se exilou em Cuba por ocasião do Golpe, voltou clandestinamente ao Brasil, mas foi preso e assassinado; Trajano, comuna histórico que me emprestava os livros de Marx; diretor de teatro – José Maria Monteiro; meu último chefe, Décio, que era sócio do Café Palheta e campeão de bridge; Alcindo Leipziger, um cara inteligentíssimo, pai do cartunista Al; advogados, como o Bustamante, tremendo boêmio, e que tinha uma namorada que atendia pelo apelido de Apocalipse (o primeiro nome não lembro), uma espécie de Roniquito de saia; meu compadre Pedrinho de Matos; Paulinho Navalhada, que teve durante um tumultuado período paixão insopitável por uma famosa atriz, filha de uma famosa poetisa; Maurício Apelbaumn, judeu inquieto que adorava carne de porco e mulata; a bela Clarice, professora de educação física que se casou, depois que foi apresentada por mim, com um grande amigo meu. 

 

E todos, além de grandes figuras humanas, extremamente competentes como bancários, inclusive eu, que trabalhava com códigos de bancos do mundo inteiro e sabia de cor os principais.

 

Era uma turma incrível e também acho incrível que, passados tantos anos – saí do BB em 1971 –, me lembre do nome de quase todos, apesar da minha conhecida amnésia alcoólica.

 

 

Jaguar

 

CRÔNICA DE JAGUAR
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